sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O vizinho no divã



– Bom dia! Pode entrar.
– Obrigado. Bom dia para o senhor também.
– Sente-se.
– Ué? Não seria deitar?
– Não! Isto é pouco usado nos dias de hoje. Mas, fique a vontade. É a primeira vez?
– Aqui, sim.
– Não – risos – isto eu sei. É a primeira vez que faz análise?
-Ah! Faço isto todo o dia.
– Como assim?
– Sou analista de sistemas.
– Não! Análise com psicanalista.
– Ah sim! Primeira vez.
– Como está se sentindo?
– Mal, né?  Caso contrário não estaria aqui gastando R$ 200,00 por 50 minutos.
– OK! Qual o seu problema? O que o traz aqui?
– Minha vizinha.
– O que tem ela?
– Ela se acha uma boba.
– E?
– Não a acho uma boba.
– O que então?
– Não sei. O psicanalista é o senhor.
– Mas eu não a conheço.
– Devia.
– Por quê?
– Ela é doce, inteligente, tem charme e é bonita, mas isto é um detalhe.
– A beleza?
– Sim.
– Por quê?
– Porque sua beleza interior é a melhor qualidade.
– Mas, isto não é motivo para trazê-lo aqui , é?
– É! Ela está sempre distante.
– Vocês não se veem, não conversam?
– Depende. Tem vezes que nos vemos bastante, mas, já ficamos quase duas semanas sem nos ver. Mas, falamos no telefone e no Chat. Neste, nós falamos frequente.
– E o que conversam?
– De tudo um pouco.
– Sobre vocês?
– É difícil. Ela não diz as coisas que preciso saber. Vive se esquivando.
– Falou isto a ela?
– Sim. Mas, no ponto de vista dela, ela responde.
– E?
– Continuo sem respostas.
– Entendo. Ai, veio aqui.
– É. Estou enfrentando uma crise de identidade.
– Crise de identidade ou paixão.
– Que isto doutor? Paixão é coisa de adolescente.
– E com quantos anos está se sentindo agora?
– Ah! Uns 15 ou 16.
– Entendo. E ela gosta de você?
– As vezes acho que sim, as vezes acho que não, é o tal do bloqueio.
– Bloqueio?
– Sim. Uma espécie de muro que nos separa. Não sei o que tem do outro lado e ela não me diz.
– Hummm.
– Dois.
– Que?
– Nada não. Uma brincadeira nossa.
– Bom, fale mais sobre ela.
– Ficou interessando , né?
– Nada disso. Preciso saber para poder te ajudar.
– Pois é! São coisas que ela diz que me confundem.
– O que por exemplo?
– O tal do bloqueio. Que ela poderia estar melhor e eu estou envolvido nisto.
– Como assim?
– Vai passar dos 50 minutos.
– Não tem problema, continue.
– Eu não vou pagar, hein?
– Fica frio, desembucha.
– Bom. Um dia eu disse a ela que eu poderia estar melhor, me referindo a nossa situação e ela disse a mesma coisa. Só não sei se é estar comigo ou que eu poderia nunca ter aparecido.
– Hummm.
– Dois.
– Vai começar?
– Ups, desculpe.
– Perguntou a ela sobre isto?
– E o doutor acha que ela respondeu?
– Que mais?
– Ela também me disse para procurar uma princesa, que não poderia me dar o que preciso porque não é livre.
– E o que você disse?
– Que já passei da idade de ser príncipe encantado que estou mais para sapo.
– E sobre não ser livre?
– Problemas pessoais, compromisso, trabalho, família.
– Ela é casada?
– Não. Mas, cuida dos irmãos.
– E você?
– Sou livre
– Não. A respeito dos irmãos dela.
– Eles são demais, umas figuras, divertidos, cheios de energia.
– Ela sabe?
– Acho que sim.
– Ela disse mais alguma coisa?
– Bem, quando eu disse que ela não sentia nada, meio que negou.
– E isto é bom?
– Devia ser se ela tivesse falado abertamente.
– Explique.
– Estávamos no Chat. Após eu falar, ou melhor escrever, ela respondeu que realmente não dava para ter este tipo de conversa ali.
– Você acha que ela tem razão?
– Totalmente. Eu vivo dizendo isto a ela.
– E ela?
– Até então achava que dava.
– E agora?
– Não sei. Não falei mais com ela sobre este assunto.
– Como ela lhe trata?
– Apesar de fugir o tempo inteiro, eu vejo muito carinho em seus olhos.
– Bom.
– E certa vez, no Chat me chamou de amor.
– E você?
– Perguntei se era sacanagem ou sentimento.
– E ela?
– Falou : Nossa como tá quente. Será que vai chover?
– Entendo. E o que gostaria de fazer?
– Pegar um megafone e gritar para o mundo que a amo.
– E por que não faz?
– Ia ser o maior mico né Doutor?
– Onde acha que poderia melhorar esta relação de vocês?
– Talvez se tivéssemos um pouco mais de tempo só nosso, sem pressa de ir embora. Sem pensar nos outros, sendo um pouquinho egoísta.
– E ela?
– Parece fugir disto.
– O que mais aconteceu?
– Certa vez rolou um beijo.
– Beijo?
– Sim. Beijo que ela diz ter sido roubado.
– E foi?
– Para mim não. Ele correspondeu, mas diz até hoje que não.
– E como foi?
– Foi leve, rápido, na verdade um pouco mais que um selinho, mas foi muito bom.
– Por que tão rápido?
– Era uma despedida, e tinha uma cidade inteira buzinando atrás.
– E depois?
– Foi ai que eu comecei a sentir um maior afastamento. Tão perto, mas tão longe.
– Como?
– Coisa nossa, deixa para lá.
– E o que pensa em fazer?
– As vezes tenho vontade de desaparecer, voltar para a minha ostra.
– E por que não faz?
– Porque ela me faz muita falta.
– Já disse isto a ela?
– Muitas vezes.
– Mas, o relacionamento não progrediu?
– Até que sim, saímos, trocamos carinhos, beijos e agimos como namorados.
– E ela?
– Falou que não estava preparada para se envolver.
– E?
– Eu disse que ela já estava envolvida. 
– E ela?
– Falou: Nossa que quente, acho que hoje chove mesmo.
– E você?
– Vontade de sumir de novo.
– Bem. O tempo terminou. Gostaria de dizer mais alguma coisa?
– Sim.
– Diga.
– Bu “pro” mundo.
– E o que exatamente quer dizer isto?
– Quer dizer pensar em si não se preocupando com que os outros irão pensar, ser livre, dar o grito de independência, amar sem se preocupar em sofrer, arriscar ser feliz, querer ser feliz e não ter medo de não dar certo. É aproveitar o momento bom porque, simplesmente, está bom. Não sofrer por antecipação. Não desistir sem tentar.
– Bom, quando voltas?
– Vou pensar.
– Até então.
Segundos depois ...
– Dona Cíntia por favor ligue para minha esposa.
Minutos depois ...
– Dr. Amauri! Sua esposa na linha 1.
– Oi amor.
– Agora é amor, Amauri, depois grosseria que me fez.
– Querida , desculpe, acho que precisamos conversar, sair para dançar, ter momentos mais nossos.
– Puxa, você nunca falou assim antes.
– Pois é, sempre tem a primeira vez.
– Bom, podemos ir no sábado.
– Não querida, podemos ir hoje.
– Hoje? Mas, e os compromissos?
– Ah querida,,, Bu “pro” mundo.


Fotografia
Fotógrafa: Fabrícia Santos
Criação:   Claudio Chamun
Edição:    Simone Disegna
Modelo:    Eu, eu mesmo, mas sem Irene.

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Democracia infiel



É muito complicado falar do tempo da ditadura militar. Há quem defende e há quem abomina. Porém, a palavra ditadura não é bem-vinda pela maioria porque ela agride tudo que se imagina de liberdade, e aqui no Brasil quando é tocado neste tema imediatamente é lembrado o período de 1964 a 1982. O que eu acho incrível é que muitos jovens se arrepiam e se alteram em falar daquela época em que nem eram nascidos. Eu era muito pequeno e não lembro bem do período crítico porque conforme foi passando os anos, tudo foi ficando mais ameno. Mas, estou consciente que foram cometidos muitos excessos e muita gente morreu.
Naquele tempo as eleições eram apenas para senadores, deputados, vereadores e prefeitos de cidades não estratégicas. Os presidentes, governadores e prefeitos de capitais, cidades de fronteira e hidrominerais eram nomeados.
Para manter a maioria no congresso, a situação inventou o senador biônico que ocupava um lugar no senado devido à nomeação com poderes iguais aos dos senadores eleitos pelo povo.
Existiam apenas o partido da situação, a ARENA – Aliança REnovadora NAcional, e o da oposição, o MDB – Movimento Democrático Brasileiro.
Com a anistia e o fim da ditadura, alguns políticos exilados voltaram e os partidos sofreram mudanças. A ARENA virou PDS com praticamente com todos os integrantes e o MDB colocou o “P” virando PMDB mantendo sua essência, porém perdendo filados para os novos partidos que se formaram PP, PDT, PTB e PT. O PP nem saiu das fraldas e voltou a fundir-se com o PMDB ficando então quatro partidos de oposição.
As eleições diretas faziam parte desta nova fase do Brasil, então a partir 1982 passamos a ter o direto de votar em governadores e prefeitos, mas não ainda em presidente cuja eleição só aconteceu em 1989.


Todo mundo sabe quem é Paulo Maluf. O que pouquíssima gente lembra e muitos nem sabem é que ele poderia ter sido o primeiro presidente civil do Brasil depois do regime militar. A primeira eleição para presidente após o golpe foi de forma indireta, em 1984, cujos eleitores pertenciam ao congresso nacional. O PDS tinha maioria, logo o presidente brasileiro não tinha como ser de outro partido mesmo que a oposição se unisse. Entretanto, ocorreram as prévias do PDS entre o candidato do então presidente Figueiredo, o Coronel Andreazza e Paulo Maluf da outra chapa. Ainda com resquícios da ditadura militar, na pesquisa de opinião a vitória de Andreazza seria esmagadora. Porém, como a eleição prévia foi fechada, deu Maluf de lavada. Isto fez com que muitos dos derrotados, por restrições ao Maluf, rompessem com o PDS fundando o PFL. Este partido novo se ofereceu para se juntar com a oposição desde que o candidato a vice fosse o seu líder José Sarney. Logo, o PDS perdeu a maioria e a esquerda, após 20 anos, conseguira colocar um presidente a frente da administração do Brasil. Conseguira? Não! Por uma fatalidade, o homem da conciliação opositora e eleito indiretamente, Tancredo Neves faleceu sem ao menos ter tomado posse e levando com ele as esperanças de muitos brasileiros. Assim assumiu o seu vice. A esquerda levou 20 anos para tomar o poder para em poucos dias devolvê-lo à direita.
O que podemos tirar de tudo isto é que se as prévias, método usado na época para ver o preferido da maioria do partido, fossem respeitadas, Paulo Maluf teria realizado seu maior sonho. Não estou dizendo que ele mereceria ter sido vitorioso ou não, e sim que se os políticos puxam o tapete deles mesmos, como nós poderemos confiar?


Depois vieram as eleições diretas e tudo que nos deixou felizes. Poder votar em quem quiser e liberdade de expressão era tudo que desejávamos. No entanto, de lá para cá presenciamos trocas partidos, corrupção ativa e passiva, criação de inúmeros partidos e a situação do país oscila entre progresso e regresso. A saúde degrada a cada ano, e analfabetismo funcional aumenta junto com a criminalidade.
Aí eu penso: Não estaríamos nós vivendo hoje em uma ditadura disfarçada?  O congresso vota o que quer e quando quer e um presidente seja bom ou ruim, depende de conchavos para poder aprovar emendas e outras coisas. Isto não nos faz reféns da vontade deles?
É muito comum ver que em algumas regiões os partidos fazem alianças e são os melhores amigos enquanto que em outros lugares ou a nível nacional são inimigos políticos e um quer ferrar com o outro.  Isto é moral?
 Estamos em ano de eleição e pouco acima falei que ganhamos o direito de votar. Na verdade foi forma de expressão. Não é questão de opinião e sim fato que temos que votar ou justificar. Poucos sabem que se não estiverem em dia com as obrigações eleitorais não poderão fazer concursos públicos ou tirar empréstimos em bancos estatais. Logo, tá mais que comprovado que o voto não é um direito e sim um dever.
Então eu pergunto: Por que esta obrigação? O voto não deveria ser de fato um direito?
Não acho que devemos fugir desta ”obrigação” que deveria ser moral e não legislativa, mas é hipocrisia uma eleição em um final de semana quente com debandada para a praia lotando os locais de votação dos munícipes, que nada tem a ver com isto, e acabando com os formulários de justificativa. Se há um meio de burlar a obrigatoriedade do voto, por que não ser facultativo?
Com certeza diminuiríamos os votos inválidos que seriam cometidos apenas por enganos ou revoltosos e teríamos uma eleição mais produtiva.
O que os políticos ganhariam com isto? Nada! Apenas que alguns não passariam pela humilhação de perder para os votos brancos e nulos. Mas, com certeza seria uma obrigação a menos para o povo que votaria com satisfação e não por exigência da lei.
Mas, em matéria de eleição outras coisas poderiam mudar para deixar o eleitor contente.
É sabido que o custo de uma eleição é altíssimo e quem paga isto somos nós. Então porque ter eleição de 2 em 2 anos? Por que não unificar todos os cargos em um só evento?


Alguém pode me dizer qual o benefício do candidato no horário eleitoral gratuito? Como um candidato pode mostrar seu valor falando apenas o nome e uma frase? Este recurso só serve para candidatos da prefeitura, governo, senado e presidência e olhe lá. E neste caso é muito melhor um debate, assim acabando com esta tortura.
Mas, o pior de tudo é a tal da legenda partidária. Para quem é leigo, a legenda partidária é a cota que um partido, conforme o número de votos recebidos, tem para colocar uma quantidade de políticos no cargo eletivo. Exemplo: Tiririca que votado por revolta ou por admiração, vai saber, carregou com ele candidatos que não tiveram votação expressiva e que passaram na frente de outros com muitos mais votos. Ou seja, tu votas em um candidato e pode estar levando outros que nem conhece ou que não são de seu agrado.
Há alguns anos uma integrante do PCdoB foi a candidata mais votada e não entrou na câmara de vereadores de Porto Alegre porque seu partido não fez votos suficientes. Reparem no que eu disse: Ela foi a mais votada, a campeã de votos. Não pode exercer o mandato porque outros candidatos entraram pela legenda partidária com bem menos votos do que ela. Isto é democracia?
Nas outras eleições o PCdoB teve que fazer coligações para poder classificar seus candidatos. Isto quer dizer, que são criados regras e jeitinhos para contorná-las.
Bom, pelo menos a ficha limpa foi aprovada. Só espero que seja executada e não arrumem mais um esqueminha para quebrá-la.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Karaokecídio



Claudinho era um rapaz pacato e tudo que procurava era sossego. Saiu da cidade grande para fugir do barulho. Assim foi para a sua casa de praia cujo local era tranquilo e silencioso. Tudo que ele queria era ouvir o barulho do mar e o canto dos passarinhos.
Mas, certo dia, não de verão, coisas estranhas começaram a acontecer.  Claudinho foi acordado por seus vizinhos barulhentos buzinando exageradamente as 7h00 da manhã, em caravana, para avisar todos conhecidos e não conhecidos que estavam chegando à praia. Quando ele achou que ia voltar a dormir, iniciou-se a gritaria dos poluidores sonoros seguido de “bateção” de portas dos carros e porta-malas.
Como seu merecido sono foi arruinando, Claudinho levantou-se e foi tomar café. Antes do primeiro gole, passou em sua rua um caminhão de político pedindo votos com uma paródia ridícula e um volume ensurdecedor. Nem bem recuperado do susto, outro político resolveu dar o ar de sua graça com uma musiquinha tão imbecil como a do seu concorrente e um volume competidor.
Pior ainda era quando um caminhão trafegava em frente a sua casa e outro na rua de trás fazendo com que suas “melodias criativas” se encontrassem em cima dele.
De meia em meia hora passavam candidatos a alguma coisa chamando atenção dos moradores sem terem noção que em vez de votos eles poderiam levar pedradas. Entretanto, nem este intervalo dava-lhe o único beneficio que queria, o silêncio. Pois, os recém-chegados abriram o porta-malas de um dos carros e ligaram o som, e aquilo que curtiam como música era um Funk da pior qualidade.
O dia foi passando e aquele barulho ia martelando a cabeça do Claudinho.
Até que enfim, por um milagre, o silêncio.
Então ele pegou um livro para curtir aquele momento raro. Mas, nem chegou na metade da primeira página, outro vizinho, repetindo o que fazia todos os dias, soltou seus cães que sempre vinham até a cerca da casa do Claudinho para provocar os dele. Com isto, ele já estava até acostumado, mas este dia parecia estar tudo diferente. Os latidos eram de tudo que é jeito e adentravam sua moradia como se fosse uma guerra invadindo seus tímpanos. Na mesma hora ele pensou em soltar os seus cães para liquidar os invasores. Os audaciosos eram pequeninos e somente dois contras os três “cavalos” dele, logo não seriam páreo.  Mas, depois ele pensou melhor:
- Tadinhos, eles não tem culpa da imbecilidade dos donos. E ainda, os meus poderiam morrer engasgados.
Os pestinhas percebendo o perigo foram embora e mais um momento de serenidade se instalou no ambiente.
Tudo parecia que o dia ia terminar bem. Os políticos deram uma trégua, os cães provocadores foram presos, e os “funkeiros” pareciam ter perdido a euforia.
Mas, de repente, as 21h00 mais uma invasão sonora. Desta vez foram gritos assustadores. Depois de tentar descobrir quem estava morrendo, Claudinho percebeu que eram os “ex-funkeiros” que resolveram arrepiar no karaokê.
Ele não sabia o que era pior: os políticos, a briga de cães, a buzinação ou esta coisa bizarra e grotesca que estava acontecendo naquele momento.
Ele nunca tinha visto tamanha desafinação e gritaria. Pensou:
- Nossa! Eles estão fazendo tudo, menos cantando. Até uma gralha fanha faz melhor.
O tempo foi passando e o fôlego dos agressores ao meio ambiente não parava. Quanto mais desafinavam, mais continuavam a cantar, ou melhor, gritar.
Após quatro horas de tortura e já deitado tentando dormir, Claudinho deu um grito:
- Ahaaaaaarrrggh!
Ele saltou da cama, vestiu-se rapidamente, desceu as escadas em um só salto, correu para a garagem. Na passagem pela área da churrasqueira apanhou os óculos de proteção que estava sobre a mesinha e colocou. Já na garagem puxou uma enorme caixa da prateleira. Arrancou a tampa desta caixa e com apenas uma mão e empunhou a motosserra que lá estava guardada. Com a outra mão puxou a corda da ignição e soltou uma gargalhada mais tenebrosa do que narrador de filme de terror.
Ele saiu de casa, atravessou a rua, fatiou o portão do vizinho e se encaminhou para os fundos onde rolava o ritual de sacanagem aos propínquos. Eles, empolgados com a cantoria medonha e o barulho do equipamento, não perceberam a invasão do morador adjacente e surtado.
Em respeito aos possíveis cardíacos e as pessoas sensíveis, vou poupá-los dos detalhes sórdidos. Mas, foi o maior, o mais brutal, pior e terrível “karaokecídio” que o mundo já soube.
 É! Tá bom. Foi o único. Porém, foi muito sangrento.
 Coincidentemente a gota final de gasolina se foi com última vítima.  Então, encerrando o massacre, ele jogou a motosserra contra o aparelho barulhento liquidando com o som e retornou para sua casa calmamente e aliviado. Ele tirou os óculos e as roupas sujas, jogou-os na lavanderia, subiu as escadas para tomar um banho e deitou.
Mesmo ciente que esta poderia ser a última noite em sua cama, ele dormiu sorrindo.
Na manhã seguinte ele levantou como se acordara de um pesadelo, iniciou seu café sossegado sem barulho de vizinhos, políticos, cães e etc. Era o mais puro e invejado silêncio. Silêncio? Ele entendia a ausência dos “ex-cantores”, mas nem de longe, apesar de não ser o horário da briga com os seus, escutava os cães chatos. E cadê os políticos que não davam trégua? Até os seus cachorros estavam em um sono profundo.
Intrigado com o silêncio, ele olha para o chão da lavanderia e nada encontra. Mas, de relance vê algo e volta o olhar espantado para as suas roupas limpíssimas penduradas no varal cujo perfume do amaciante ele sentia de onde estava..  Correu para conferir a motosserra na garagem e a encontra sem vestígio algum da chacina. Na volta repara os óculos limpinhos em cima da mesinha. Sem entender pensa:
- Será que eu sonhei? Mas, eu tenho certeza. Foi tão real.
Um tanto aliviado, retornou para o seu café quando palmas soaram em frente a sua casa.
Era a polícia.
- Pois não!
- Senhor! Houve um massacre na casa em frente. Ao que indica foi um ataque de uma serra elétrica. O senhor viu ou ouviu alguma coisa?
- Não! Apenas barulho de pessoas cantando e música muito alta.
Ele não poderia se entregar sem ter certeza. Afinal, as evidências de que cometera o crime não existiam e ele só lembrava até o momento do banho e ter ido dormir. Só podia ter sido um sonho.
- Tudo bem senhor. Todos os vizinhos disserem o mesmo. Se lembrar de algo, por favor procure a polícia.
Passado alguns dias, Claudinho convencido de realmente ter tido um pesadelo e alguém ter executado o seu sonho matutou:
- Será que tenho poderes de premonição?  Mas, por que sonhei comigo mesmo? Sei lá! Mas, que este silêncio está bom, ah isto tá.
Então alguém com voz bem baixinha chamou-o no portão:
- “Carteeeiro”.
O tom era tão baixo que Claudinho só percebeu que tinha gente chamando porque seus cães estavam recebendo o rapaz com toda tradicional hospitalidade canina em recepção aos fiéis agentes da correspondência.
Ele se aproximou e perguntou:
- Por que não bateu palmas?
- Eu não quis incomodar – falou o carteiro com voz trêmula que entregou a carta e saiu rapidamente.
Claudinho abriu a carta e leu:

“Caro vizinho:
          Obrigado por nos livrar dos barulhentos.
          Ninguém mais aguentava aqueles assassinos da música.
          O senhor foi o único que teve coragem de fazer o que todos queriam.
          Não se entregue, mesmo que todos saibam quem foi.
          Estamos juntos nesta. É o nosso herói.
          Até os políticos evitam de passar perto daqui e o vizinho mala dos cachorros se
          mudou correndo esta manhã.
          Desculpa por termos invadido sua casa e o sonífero dos cães.
         Precisávamos limpar as provas do crime.
          PS: Por que a motosserra?”

Após ler, ele sorriu e respondeu olhando para a carta:
- Porque eu não tenho uma metralhadora.

* Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança é a mais pura vontade de ser realidade.